Armadilhas da Transformação Digital

As tecnologias digitais estão mudando as regras do jogo: elas trazem novos desafios, possibilidades, dilemas e paradoxos para a criação e captura de valor em uma organização. Nesse novo mundo da hiper digitalização, ter uma vantagem competitiva sustentável exige uma mudança no modelo de pensar, fazer e ser organizacional. É essencial utilizar as tecnologias digitais para melhorar radicalmente o desempenho dos negócios, seja por meio de uma melhor experiência do consumidor, da eficiência operacional ou da criação de novos modelos de negócio. A transformação digital é indispensável: não basta apenas compreender as novas tecnologias, é necessário extrair o máximo valor delas para alcançar uma performance bem-sucedida. As mudanças necessárias para que a transformação digital aconteça em uma empresa incumbente são complexas e repletas de potenciais armadilhas.  

A primeira armadilha: a atenção gerencial limitada 

Uma armadilha muito comum e pouco percebida nas organizações, especialmente pelo topo, é a atenção gerencial limitada. Ao personificar o topo (ou o dirigente) como heroico, intocável e genial, as limitações e fragilidades existentes são substituídas pela crença na invencibilidade: é possível dar conta de tudo e de todos. Esse é o primeiro erro fatal.  

Não há dúvida de que o papel da liderança, especialmente da equipe de topo, é crucial para o sucesso (ou insucesso) da organização, principalmente em momentos de grandes mudanças, como as geradas pela transformação digital.  

Entretanto, é preciso ter clareza das limitações do ser humano, mesmo do fundador brilhante ou do presidente que gerou crescimento exponencial no passado. Uma dessas limitações é a atenção limitada, que é inerente a qualquer indivíduo. O ser humano possui racionalidade limitada, ou seja, a capacidade de selecionar, decodificar e interpretar informações não é ilimitada.  

Pelo contrário, o tempo e a atenção são recursos escassos. Portanto, o foco da equipe de topo impacta profundamente a sobrevivência, crescimento e sucesso (ou insucesso) organizacional.  

No mundo atual, as informações são ilimitadas e irrestritas. Isso, por um lado, é uma alavanca, pois democratiza o conhecimento; por outro, é uma trava no processo decisório, pois retira o foco dos dirigentes do que é realmente importante e necessário. 

A quantidade infinita de relatórios e páginas não ajuda o executivo a tomar decisões acertadas, pelo contrário. A atenção da equipe de topo precisa estar no lugar certo, e isso só é possível quando as informações têm a qualidade e síntese necessárias, permitindo-lhes focar no que é realmente importante, isto é, em um número limitado de questões essenciais, como a criação de valor para o cliente.  

A eficácia depende da capacidade dos gestores de manter essa atenção alinhada às prioridades estratégicas da organização, garantindo coordenação e consistência nas decisões ao longo do tempo.  

O primeiro desafio é nutrir o topo da organização com inputs que alavanquem e facilitem a tomada de decisão e não o contrário, como acontece muitas vezes. Mas, com informações ilimitadas e irrestritas, como fazer isso? Pela articulação da estratégia e da cultura.  

A segunda armadilha: a estratégia organizacional 

Estratégia e cultura devem ser os principais filtros para qualquer tomada de decisão, mesma da mais básica à mais sofisticada. Quando há esse alinhamento, é menos complicado olhar na direção correta.  

A estratégia organizacional é o compromisso de atingir um objetivo por meio de ações e comportamentos coerentes que apontam para uma direção única. Quando se tem uma boa estratégia, atingi-la significa alcançar sucesso e vantagem competitiva sustentável. 

Ao analisar grande parte das organizações, o problema não é a falta de um plano estratégico. Se as empresas possuem uma estratégia de inovação formulada, então por que muitas não conseguem se transformar digitalmente? Existem duas respostas comuns para essa pergunta. 

A primeira é quando a estratégia do negócio não foi formulada, desde o princípio, para responder à indagação: o que é inovação para essa organização? Ou seja, sua concepção foi baseada no “copia e cola” da estratégia de inovação de outras instituições ou de revistas de negócios que dizem ter descoberto as melhores práticas.  

Isso não significa que as melhores práticas não possam ser adequadas para uma organização, mas é preciso muita atenção em movimentos como esse. Quando a importação acontece sem nenhuma reflexão e adaptação, aspectos organizacionais fundamentais são esquecidos, como a cultura organizacional. 

A estratégia e os valores passam a ser filtros incoerentes que brigam entre si. A existência de modelos conflitantes dificulta e, muitas vezes, impede a organização de fazer os trade-offs necessários para a transformação digital. Qualquer processo de transformação é complexo e exige disciplina.  

Um exemplo simples é quando alguém que nunca fez academia se propõe a ganhar 5 quilos de massa magra em 5 meses. Uma meta realista e desafiadora, assim como uma estratégia deve ser. Ao traçar esse objetivo, ir à academia uma vez por semana é insuficiente. É preciso ir em dias que se está desmotivado e renunciar a aspectos que não trazem benefícios imediatos, mas que são coerentes com o objetivo de longo prazo.  

Voltando à cultura e à estratégia: quando não há coerência, há perda de foco da atenção gerencial. O resultado é sinônimo de decisões incoerentes, desgastando o tecido organizacional.  

Nos melhores casos, isso leva ao fracasso da transformação digital, e nos piores, à descontinuidade do negócio. Para criar uma boa estratégia de inovação, é preciso começar respondendo a duas perguntas: como a inovação criará valor para os principais stakeholders da sua organização? E como o valor será capturado da inovação gerada?  

Compreender o que signifca inovar (e usar as tecnologias digitais) no seu negócio para gerar valor para os seus stakeholders é essencial. Essa reflexão e discussão precisam, desde o início, estar integradas aos valores organizacionais e pautar um conjunto de ações consistentes que irão guiar as decisões organizacionais. 

Essa é a reflexão que deve ser traduzida na estratégia organizacional para alcançar o sucesso.  

A segunda resposta mais comum para o porquê as estratégias de inovação falham é sua não execução. Apesar de o objetivo estratégico ser claro, as pessoas não o executam como planejado. E por quê? A falta de flexibilidade organizacional para adotar estratégias emergentes e a desconexão entre o topo e a realidade organizacional são fatores críticos que prejudicam a formulação estratégica.  

Quando os inputs estratégicos vêm exclusivamente da alta liderança, que muitas vezes desconhece as dinâmicas do dia a dia da organização, há um risco elevado de formularem-se estratégias com base em uma visão incompleta da realidade.  

Elementos como pressões externas, otimismo exagerado, comunicação distorcida e o medo de represálias frequentemente dificultam que os líderes tenham clareza sobre os desafios internos, resultando em decisões estratégicas desalinhadas da realidade organizacional.  

Outra possível explicação é quando o topo quer transformar digitalmente a organização, mas não está disposto a rever, ressignificar e renovar a cultura existente. Isso não significa começar de uma página em branco e descartar o que existe, mas sim capturar a essência e fazer as mudanças necessárias. A cultura que sustentou o passado não necessariamente construirá o futuro.   

A terceira armadilha: a cultura organizacional 

A terceira armadilha é a cultura organizacional. A cultura é o jeito de ser e de fazer da empresa, das equipes e dos indivíduos. Ela tem como base os valores, que se tangibilizam por meio de comportamentos. A cultura é uma das principais alavancas (ou travas) para a implementação de uma estratégia de inovação de sucesso.  

A grande armadilha da renovação cultural, que permitirá os novos ciclos de sucesso do negócio, é o olhar superficial. Ao pensar em culturas de empresas inovadoras de sucesso (nas quais as tecnologias digitais criam e capturam valor, gerando vantagem competitiva), muitos observam a piscina de bolinhas, a sinuca e as férias ilimitadas – ou seja, apenas alguns poucos artefatos considerados ‘‘legais’’.  

Ao se depararem com esses símbolos, o ‘‘copia e cola’’ é feito na esperança de criar uma cultura de inovação. Grande ilusão! A cultura organizacional é muito mais profunda e complexa do que alguns artefatos. Eles são, sim, símbolos que, quando coerentes, tangibilizam valores institucionais.  

A coerência cultural, quando existente, elimina potenciais dilemas. Se algo é um valor, não há dilema. Vamos a um exemplo talvez extremo, mas útil: se dizer a verdade é um valor para a pessoa e para a organização, não existe dilema quando ela se encontra em qualquer situação, seja ela complexa ou simples. A empresa precisa urgentemente de capital, e, para consegui-lo é preciso maquiar os números operacionais e financeiros. 

Se falar a verdade não é um valor, a pessoa se encontra em um dilema: afinal, qualquer uma das decisões implica perdas e ganhos. Mas, se falar a verdade é um valor, não há dilema. A pessoa não terá dúvidas sobre a decisão, o que não significa que a situação não seja difícil.  

Quando os valores são sólidos e profundos, eles atuam como um filtro para qualquer decisão, em qualquer nível da organização. O aumento do nível de coerência organizacional permite ao topo sustentar sua atenção (limitada) onde deve. Isso não significa que a cultura não deva mudar – muito pelo contrário.  

Especialmente em momentos de mudança radical, como o da transformação digital, em que novas regras do jogo são impostas, a mudança não é apenas bem-vinda, mas necessária. Então, como mudar?  

Primeiro, é importante ressaltar que cada cultura é única e irreplicável, portanto, culturas de inovação de organizações diferentes serão diferentes. É necessário desviar da armadilha de copiar a piscina de bolinhas tal como é, e sim compreender o que há de comum nas camadas mais profundas de culturas de inovação de sucesso. É preciso conhecer o que existe (e funciona) para construir o que irá funcionar para a sua organização. É necessário ir além da superficialidade.  

Os 6 paradoxos da cultura de inovação 

A cultura de inovação é paradoxal. Assim como uma moeda é constituída por dois lados opostos (que precisam coexistir), os paradoxos da cultura de inovação também o são. São seis: tolerância ao fracasso, mas não à incompetência; segurança psicológica com honestidade brutal; experimentação com muita disciplina; estrutura não hierárquica e liderança forte; colaboração e accountability individual e a busca pela mudança compreendendo a essência.  

Olhar apenas para um dos lados é necessário, mas completamente insuficiente! Sem a honestidade brutal, a segurança psicológica não leva à transformação digital. Assim como a experimentação é necessária, mas insuficiente se não houver disciplina para capturar aprendizados. ‘’Copiar e colar’’ apenas um dos lados (e geralmente é sempre o mais ‘’legal’’) é uma perigosa e sedutora armadilha. É preciso gerir a coexistência dos opostos!  

Conclusão 

Ter consciência, compreender e refletir sobre essas três armadilhas é o primeiro passo não apenas para se adaptar às necessidades do mercado e dos clientes, mas para criar e gerar valor a partir das tecnologias digitais. Elas precisam ser uma fonte de melhorias radicais de desempenho. É importante ter em mente que o valor da transformação digital para uma empresa pode ser completamente diferente para outra.  

Se o objetivo for apenas sobreviver às transformações em curso, certamente não será possível criar uma estratégia e cultura de inovação de sucesso.  

E você deve estar se perguntando: existem empresas incumbentes que conseguem fazer essa virada? Claro que sim! Temos exemplos no Brasil, como o da Magalu, uma organização com mais de seis décadas que se transformou radicalmente nos últimos tempos, preservando sua essência.  

Exemplos como esse são ótimos para inspiração, mas, novamente, não caia na tentação de “copiar e colar”. Embora possa parecer o caminho mais fácil, certamente não é. Cada história empresarial é única, e você precisa aprender com a sua própria trajetória para construir a cultura que sustentará os próximos ciclos de sua organização. 

Texto adaptado para o blog Lonax sob autorização; Anah Burchart é pesquisadora e professora da Fundação Dom Cabral (FDC) nas áreas de gestão da inovação, estratégia e empreendedorismo, além de Professora Visitante na Universidade de Aarhus, na Dinamarca. 

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